quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

Porquê as freguesias?



Linhas gerais de um
 estudo sobre as origens das pequenas autarquias*


  Desde a primeira metade do século XIX, se vem sublinhando, cada vez mais, a importância das autarquias, na vida e na governação dos povos. Esse reconhecimento tem acompanhado o aprofundamento da vivência democrática que caracteriza as sociedades modernas, mas tem as suas raízes profundas em instituições que floresceram ao longo dos séculos. Com ele está relacionado o desenvolvimento dos estudos históricos que têm por objecto as origens das instituições autárquicas e a pluralidade dos contributos que nelas convergiram, dos quais resultou a fisionomia de que se revestiram nos tempos mais recentes.

1. Introdução

Ao analisar a história das autarquias, os estudiosos têm-se concentrado na história dos municípios, entendendo estes num sentido praticamente unívoco, em resultado da configuração com que ficaram após a reforma administrativa levada a cabo no século XIX, e deixando de lado, como manifestações episódicas, alguns dos mais antigos municípios que, por razões diversas – especialmente políticas e económicas – não sobreviveram como tais à reforma administrativa.
Por outro lado, encarando a história das autarquias como a história dos municípios, esqueceu-se a história das freguesias e das aldeias, como um capítulo secundário, porventura despiciendo, da nossa história como povo, cimentada na existência de muitas e plurifacetadas comunidades.
Para tal situação contribuíram as circunstâncias em que surgiram as freguesias com o estatuto de que desfrutam na actualidade, o que levou a supô-las como uma inovação, introduzida para substituir uma realidade anterior, as paróquias religiosas, quando se achou necessário implementar a separação de poderes, entre o Estado e a Igreja, entre a prática religiosa e a vida civil[1].
Na verdade, a freguesia já existia, ainda que, por então, nela se fundissem os dois aspectos, o civil e o religioso, e desta fusão resultasse que, no correr dos tempos, devido à importância de que desfrutava na sociedade civil, o poder religioso se impusesse como poder dominante, dentro da freguesia ou paróquia.
Não restam dúvidas de que, desde longe, a freguesia teve uma indiscutível função civil, como resulta daqueles momentos em que os seus habitantes se viram na necessidade de se unir para defender os seus próprios direitos ou para realizar obras importantes de interesse colectivo.
Outra das razões que fizeram com que se relegassem as freguesias para o segundo plano foi a convicção de que elas eram entidades menores, com uma importância muito reduzida na organização do território. Este preconceito, não apenas subalternizador mas ainda minimizador do papel das freguesias, acentuou-se pelo facto de a reforma que levou à separação entre a paróquia religiosa e a sociedade civil se ter operado numa época em que os espíritos estavam sob a influência da concepção centralista da ideologia napoleónica.
Mais do que como realidades próprias, com a sua individualidade e a sua história, as freguesias foram e continuam a ser vistas como simples parcelas em que foram divididos os municípios, por razões de prática administrativa, como se não tivesse acontecido exactamente o contrário, isto é, como se geralmente os municípios não tivessem resultado da reunião de um conjunto de freguesias, na sua maioria preexistentes.
O preconceito de que, como realidade civil, não existia a freguesia, mas apenas a paróquia religiosa, contribuiu para que os historiadores do municipalismo e das instituições democráticas se não interessassem pela história das freguesias. Parecia mesmo que até um certo momento só existia a paróquia ou que a freguesia não tinha outras funções além das religiosas. Só a partir de uma dada altura, como realidade nova, teria nascido a freguesia civil!
Por esse motivo é que a história das nossas comunidades, na perspectiva civil, se tem cingido à história dos municípios. Nessa linha, entre nós, se enquadram os estudos de Alexandre Herculano, Teófilo Braga, Henrique da Gama Barros, Torquato Soares, e recentemente de outros[2].
Essa orientação teve, porém, como contrapartida o estudo da história das paróquias, como entidades de cariz religioso, no âmbito da história da Igreja. Paralelamente ao que sucedeu com a história dos municípios – em que especialmente se fez sentir a influência de Augustin Thierry – foi Imbart de la Tour, autor do livro Les Paroisses Rurales du IV.e au XI.e  siècle, o primeiro historiador que chamou a atenção para a importância do estudo das paróquias[3].
Desde então, com especial relevo para as últimas décadas, têm-se multiplicado os trabalhos dedicados à história das paróquias nos vários países, focando aspectos tão diversificados como o povoamento e a organização territorial, a difusão do cristianismo e a organização eclesiástica. Em Portugal, para além das investigações dedicadas a temas parcelares, a história das freguesias do ponto de vista religioso serviu de tema à valiosa monografia As Paróquias Rurais Portuguesas, escrita por Mons. Miguel de Oliveira[4].
Alberto Sampaio, autor de As Vilas do Norte de Portugal, foi o primeiro historiador português que orientou a sua investigação no sentido de definir o papel que entidades tão secundárias como as villas romanas desempenharam, como antepassados de muitas das freguesias que actualmente matizam o nosso território[5]. Embora ainda longe de alcançarem o incremento de que beneficiam actualmente, o limitado avanço dos estudos históricos e arqueológicos da sua época, não lhe permitiu avaliar o papel de outras formas de organização comunitária, pelo menos desde o período romano, na formação das paróquias e freguesias.

2. Comunidades primitivas e ocupação romana

Ainda antes da ocupação romana, já as comunidades locais se tinham instalado em territórios, mais ou menos definidos, e exerciam neles a sua actividade. No entanto, apesar do esforço dispendido pelos arqueólogos, ainda não temos um conhecimento satisfatório dessas comunidades, pela carência de elementos documentais. As escassas informações de que dispomos a esse nível devem-se a autores do período romano, mencionando-se como os mais antigos Estrabão, Pompónio Mela e Plínio. Com base nas informações hauridas nestes escritores, os arqueólogos do século XX procuraram interpretar um dos signos que aparece em algumas inscrições do noroeste peninsular, uma espécie de C voltado para a esquerda [ɔ], que tanto poderá corresponder a centúria, segundo alguns, como a castellum, segundo outros, mas de qualquer modo designará uma comunidade étnica ou o espaço fortificado onde a mesma se refugiava.
À medida que se estende e aperfeiçoa a estrutura administrativa implementada pelos romanos, torna-se possível um conhecimento mais aprofundado das sociedades espalhadas pelo território. Esse conhecimento continua naturalmente a ser condicionado pela existência de fontes escritas, de índole narrativa, jurídica ou epigráfica, e pelos dados que essas fontes disponibilizam. A natureza e organização dessas comunidades espelham o que se passava nos arredores de Roma, no Lácio, e depois em toda a Itália, que a seguir se reproduziu nas Gálias e na Península Ibérica.
A organização administrativa romana, que inicialmente visava objectivos de estratégia militar e de manutenção da ordem pública, e logo a seguir o domínio do território destinado a controlar os recursos materiais e a tornar efectivas as exacções fiscais, importantes para o funcionamento da máquina do império, baseava-se efectivamente na divisão em províncias (na Hispânia, a partir de 127 a.C., a Ulterior e a Citerior e, com Augusto, depois de 27 a.C., a Lusitânia, a Bética e a Tarraconense), governadas por um pretor, propretor ou cônsul, e, depois, na divisão destas em conventi, cuja existência se relacionava com a administração da justiça, mas, na prática, a governação do território era feita a partir das cidades, algumas preexistentes e outras fundadas sob o domínio romano[6].
As cidades do Império Romano, em resultado da sua origem e do modo de integração no domínio de Roma, gozavam perante a administração de tratamentos diferenciados, que se reflectiam no estatuto fiscal e na autonomia interna de que gozavam – peregrine, foederate, stipendiarie, libere et imunes
Para além de fundarem colónias – cidades fundadas ex novo, com cidadãos enviados por Roma, geralmente veteranos do exército e suas famílias – as autoridades romanas elevaram à categoria de municípios vários núcleos urbanos anteriores à sua chegada. Esta promoção dava-lhes o privilégio de serem tratados como parceiros pelas autoridades romanas e de se governarem com autonomia. Aos respectivos habitantes eram concedidos todos os privilégios de que usufruíam os habitantes de Roma.
O conjunto dos habitantes, designado como populus ou plebs, ou com outros nomes, elegia, segundo normas precisas, os magistrados que se ocupavam do governo da cidade – os questores (que tratavam dos recursos financeiros), os edis (que tinham a responsabilidades das estruturas materiais) e os duúnviros (a que competia a administração da justiça).
A existência de um considerável número de municípios na área geográfica correspondente ao hodierno Portugal está em relação com o elevado nível de municipalização alcançado por este território durante a ocupação romana.

3. As comunidades do mundo rural

Para lá das muralhas das cidades, estendiam-se grandes espaços, com uma população mais ou menos densa, que deles extraía os recursos necessários à respectiva sobrevivência, cujos excedentes eram canalizados para o abastecimento dos centros urbanos. Esta população distribuía-se pelos diversos pagi e vici disseminados pelo território.
Um pagus era uma área rural, de povoação relativamente dispersa, cujos habitantes geralmente se designavam como pagani. Observe-se que o significado adquirido por este termo (pagão, e, dele derivado, paganismo) foi responsável por algumas confusões de linguagem, actualmente superadas. O pagus abrangia um território relativamente vasto, dentro do qual se localizavam as explorações agrícolas – os fundi. Os pagi oram tratados como unidades censitárias e fiscais pela administração romana, mas a sua existência era possivelmente anterior e os seus habitantes ou os que os representavam agiam com autonomia, e eram tratados como parceiros, pelo menos em relação a certas matérias, como a chamada lustratio finium ou reconhecimento dos limites (que se consideravam sagrados) do pagus, a gestão dos edifícios, das obras públicas ou de fruição pública, como as viae vicinales, e dos dinheiros resultantes das doações particulares. A lustratio pagi e outras funções de índole predominantemente religiosa, como o culto das divindades locais e o culto do imperador, eram exercidas pelos magistri pagi, mas pelo menos numa parte desses pagi havia um conselho de decuriões, que tomava as decisões de interesse colectivo ex scitu pagi.
O vicus (de que, aliás, também derivam as palavras vizinho, vizinhança, e até o topónimo Vigo) correspondia a um núcleo habitacional de pequena dimensão. Os vici devem a origem a factores de ordem económica – agrícola, artesanal e comercial – ou religiosa. No vicus de índole agrícola, os moradores ou vicini ocupavam-se fundamentalmente do cultivo da terra, frequentemente através da sua exploração comunitária; um conselho de moradores deliberava sobre matérias idênticas às que na cidade eram da competência da Ordo decurionum, como, por exemplo, da cedência de terreno para a erecção de um monumento honorífico. Havia excepções, como aquela em que um vicus estava na dependência de um patrono, tendo sido ou não por este fundado. Os vici ligados às actividades artesanais ou comerciais correspondiam a importantes áreas de produção de artefactos, e situavam-se nos lugares de paragem (stationes) ou nos cruzamentos das vias de comunicação e portos, assim como em locais onde se realizavam feiras e mercados. Alguns nasceram por mercê de factores religiosos, na proximidade de santuários, especialmente daqueles que atraíam as pessoas por razões de saúde, designadamente quando estavam associados às águas termais.
Testemunhos epigráficos mostram-nos que pelo menos alguns vici eram governados por magistri eleitos anualmente e tinham conselhos formados por indivíduos que prestavam assistência aos magistrados iurisdiscendi quinquenales, que se ocupavam dos problemas da justiça, deliberando vici sententia, e eram responsáveis pelas operações de censo, que se repetiam de cinco em cinco anos, seguindo o exemplo do que se passava nas colónias e municípios. Torna-se clara a função administrativa que, tal como o pagus, também o vicus desempenhava. O vicus estava, no entanto, longe de se apresentar como uma realidade homogénea, em todos os casos, e variava entre o pequeno centro habitacional em desenvolvimento mas já próximo dos modelos urbanos, e o pequeno aldeamento rural, onde se registavam situações económicas e sociais diversificadas, em certos casos de grande pobreza.
Em simultâneo com os pagi e vici, devemos considerar outras realidades, como os domínios particulares, entre os quais se destacam as villae. Embora em muitos casos relacionadas com a administração fiscal, estas villae ou “vilas” eram explorações agrárias privadas, de razoável dimensão, que, além das terras de cultivo e dos montados, incluíam as habitações do senhorio ou do feitor e as dos trabalhadores, os celeiros, os lagares, as oficinas, quando fosse o caso, e os estábulos. Com o andar do tempo, ao longo da Idade Média, os trabalhadores destas villas alcançariam diversificados níveis de autonomia, em razão dos quais as mesmas se apresentam, na perspectiva das freguesias posteriores, em plano idêntico ao dos pagi e vici. Todos estes vocábulos continuarão a aparecer, nos tempos medievais, para designar as realidades sobre que em grande parte assentam as paróquias e as freguesias dos séculos posteriores.

4. Após o advento do cristianismo

Quando falamos em paróquias, estamos a mencionar uma realidade que supõe a grande mudança que entretanto se deu no Orbe romano e resultou da difusão do cristianismo, que beneficiou da liberdade de culto, introduzida pelo edito de Milão, do imperador Constantino, em 313, e transformada em religião oficial do Estado pelo imperador Teodósio, com o edito de Tessalónica, em 380. A Igreja como instituição assentará os pilares nas estruturas do Império, servindo-se até do seu vocabulário, como sucedeu, por exemplo, com a palavra diocese, introduzida pela reforma de Diocleciano, para designar a capital de uma grande área administrativa, que englobava um conjunto de províncias, embora só muito mais tarde, e com outros cambiantes, venha a ter uma utilização eclesiástica[7].
A Igreja estabelecerá também as bases da sua organização a partir das grandes cidades, onde residia o Bispo, e os cristãos que nela viviam, e depois os do mundo rural que a circundava, se reuniam, recebiam o baptismo, participavam na celebração da Eucaristia e eram sepultados.
À medida que o cristianismo se difundia até ao mais longínquo aro rural, tornava-se cada vez mais necessário criar meios de assistência à população, através da erecção de lugares destinados a acolher as assembleias dos crentes, as igrejas, aonde o Bispo ou os clérigos por ele delegados se deslocavam, para ministrar a catequese e presidir às celebrações dominicais, uma vez que inicialmente o baptistério e o cemitério continuavam a localizar-se na sede episcopal. Estas novas igrejas eram construídas nos pagi e vici, por onde estavam disseminados os cristãos que se iam convertendo, e por vezes ocupavam os lugares anteriormente dedicados aos ídolos venerados pelos seus habitantes. Encontramos menção de um movimento de erecção de igrejas relativamente intenso na História dos Francos, de Gregórios de Tours (539-594). Este movimento era comum a outras áreas da cristandade, incluindo o noroeste peninsular.
Em pleno reino suevo, foram elaborados, na sua forma inicial, dois importantes documentos, posteriormente conhecidos como Divisio Theodomiri e Divisio Wambae. A Divisio Theodomiri (Teodomiro foi o rei que conduziu os suevos ao cristianismo), documento que pretensamente teria sido elaborado num Concílio realizado em Lugo, em 569, fornece-nos a lista das paróquias então existentes no espaço correspondente ao reino suevo, independentemente da designação com que genericamente são referidas (abstemo-nos por agora de estudar os matizes dos vocábulos diocese e paróquia em relação a esta e às épocas seguintes). As “ecclesiae” aí mencionadas correspondem a antigos vici (nome, todavia, não usado no documento), mas em simultâneo faz-se o elenco de uma série de pagi (estes assim referidos), a que se estendem igualmente os cuidados pastorais de cada um dos Bispos.
Os suevos acabaram por ser integrados no reino visigodo. Ora os visigodos, por razões históricas suficientemente conhecidas, foram de todos os bárbaros os mais próximos herdeiros da tradição romana. S. Isidoro de Sevilha (560-605), que personaliza e compendia todo o saber do seu tempo, na conhecida obra Etimologias, classifica as povoações existentes na época, distribuindo-as pelas categorias já conhecidas: as cidades (dentro das quais, com evidente arcaísmo, distingue os municípios e as colónias), os vici, os pagi e os castella, entendidos no sentido que temos vindo a referir.

5. Comunidades locais sob a administração muçulmana

Poder-se-ia recear que durante a ocupação muçulmana, pelo menos na metade sul da Península Ibérica, a situação se tivesse alterado. Mas na verdade, embora com o uso de nomes diferentes, tomados da língua árabe ou dos seus dialectos, encontramos nas terras meridionais um panorama semelhante ao do norte.
Assim, deparamos com áreas mais vastas, à espécie de distritos, divididas em cora’s, que, por sua vez se subdividem em demarcações menores, chamadas iqlim, dentro das quais se localizavam as várias alquerias ou aldeias. Note-se que o vocábulo al-deia, que então designa um pequeno conjunto de casas, normalmente o edifício destinado à habitação e os seus anexos, só mais tarde – e curiosamente fora do território sob o domínio muçulmano – virá a adquirir o significado com que hoje o utilizamos: encontra-se pela primeira vez em 1253, numa carta régia endereçada aos “hominis de aldeis et de terminis de Bragancia de extra villam de Bragancia”[8].
Se é geralmente admitido que entre os muçulmanos não existiu qualquer instituição que se pudesse comparar aos municípios da Europa ocidental e, em concreto, da Península Ibérica, o mesmo não poderá dizer-se com rigor a propósito das mais pequenas comunidades, especialmente das que se localizavam no mundo rural. Um certo abandono dessas comunidades a si mesmas, por parte do poder central, desde que satisfizessem os encargos tributários, levou-as a organizarem-se localmente, em moldes que se poderão considerar autogestionários. Documentos do século XII e XIII, testemunham a sobrevivência de algumas dessas comunidades rurais ou djama’s (aljamas na versão fonética dos reinos cristãos), que eram dirigidas por conselhos de anciãos ou shuyûkh. Encontramos influências dessa instituição nos conselhos de notáveis designados como “dos seis” nos forais extensos da área de Ribacôa.

6. Últimos séculos do primeiro milénio

No mundo cristão ocidental, o número de paróquias cresceu exponencialmente durante os séculos IX e X. Tal expansão foi acompanhada pelo fenómeno que se designa como a territorialização das paróquias. Operou-se mais rapidamente nas áreas onde houve maior continuidade dos grupos humanos que habitavam no território, e onde, por conseguinte, se tinham preservado melhor as estruturas antigas. Naturalmente, além da preocupação em clarificar a pertença das populações de uma determinada área a uma igreja específica, para efeitos de baptismo, de sepultura e de outras implicações religiosas, havia, como nos antigos vici e pagi, uma nítida motivação que podemos dizer de índole fiscal, isto é, a preocupação de delimitar as áreas geográficas para efeitos de pagamento da dízima e de outros contributos. Essa territorialização virá a ser reconhecida oficial e definitivamente pelo Direito Canónico, como consta da Summa Aurea de Henrique de Susa, escrita por volta de 1250[9].
Um dos melhores testemunhos do caminho já percorrido no âmbito da organização paroquial, no século XI, é o Censual do Bispo D. Pedro, que permite elaborar um mapa completo das paróquias da Arquidiocese de Braga no tempo deste dinâmico prelado (1070-1091), fornecendo-nos um panorama muito próximo do actual[10].
Facto é que, para além da realidade religiosa, essas comunidades realizavam assembleias destinadas a tratar dos problemas materiais da vida quotidiana, como as águas, as pastagens, as fontes e os caminhos, e a eleger os mordomos ou os seus sucedâneos, que se encarregavam da colecta dos impostos a pagar ao monarca ou a quem fazia as suas vezes.

7. Após a fundação de Portugal

Os séculos XII e XIII, em Portugal, correspondem ao período áureo de expansão das instituições municipais. As comunidades locais foram chamadas a participar na defesa e na consolidação do país e no seu desenvolvimento, e deram-lhe um amplo contributo.
Os forais eram os principais documentos através dos quais se reconhecia a existência de uma comunidade, se delimitava o seu território, e se lhe concedia um determinado grau de autonomia, definindo as regras a seguir, em geral, ou individualmente, nas relações dos vizinhos, quer entre si, quer com os moradores dos territórios circundantes, e com o monarca.
Nos mais antigos desses documentos, não se observa uma distinção clara entre as simples comunidades de freguesia ou de aldeia e os municípios, porque tal distinção só gradualmente se foi introduzindo. Com efeito, nos tempos iniciais, as povoações a que é outorgada uma “carta de foro”, quer tivessem já um certo cariz urbano, como os burgos e póvoas, quer se ficassem pela matriz rural, eram caracterizadas pelo diminuto alfoz territorial.
Só quando, em face das condições geográficas e sociais, uma parte dessas comunidades foi chamada a assumir a responsabilidade de um território mais vasto, arcando com os encargos da administração, da justiça e da defesa, se introduziu a diferenciação, que levou à criação de amplas circunscrições, cuja sede passava a ser a vila. As pequenas autarquias que não beneficiaram deste processo nem foram integradas num município maior mantiveram-se, embora como simples freguesias ou aldeias, com órgãos de governo próprios, porventura mais reduzidos, distinguindo-se então os concelhos de município e os concelhos de aldeia.
As Inquirições levadas a cabo nos reinados de D. Afonso II e D. Afonso III permitem a elaboração de um mapa, que não difere muito do actual, da freguesias do norte do país. Aparecem-nos estas como unidades espaciais, para efeitos de ordem fiscal, e em muitas pagam-se impostos ou tributos de índole colectiva, sendo os moradores responsáveis pela sua recolha, o que os fazia aproximarem-se uns dos outros e aprofundar a consciência da sua existência como comunidade.
Mantinha-se este panorama no começo do século XVI, conforme o testemunho de muitos dos forais manuelinos. A freguesia-paróquia continuará a desempenhar, durante vários séculos, as suas funções simultaneamente nas esferas religiosa e civil, e a servir de intermediária entre os poderes mais altos – a coroa e o município – e as populações.

8. Em conclusão: as freguesias no mundo contemporâneo

A primeira reforma administrativa posta em execução após a implantação do liberalismo (Decreto de 18 de Julho de 1835), com o objectivo de adaptar o sistema administrativo às exigências dos tempos modernos, criou as Juntas de Paróquia, que se ocupavam dos assuntos da administração civil, embora a autoridade religiosa – o pároco, que presidia à Junta – continuasse a ter um papel predominante.
Após a implantação da República, ocorrida em 5 de Outubro de 1910, consumou-se a separação entre a paróquia religiosa e a freguesia civil, no meio de um processo nem sempre linear, através do qual se chegou a uma situação que, no fundo, se mantém, na actualidade.
É, porém, de observar que as reformas introduzidas após a revolução liberal enfermavam do pressuposto vicioso do centralismo, de tradição napoleónica, que fazia com que os municípios, à partida credores de uma autonomia que era necessário fomentar, proteger e regulamentar, se tornassem órgãos de execução das políticas do governo central, e, em paralelo, as freguesias se transformassem em instâncias destinadas a concretizar as decisões dos órgãos deliberativos dos municípios.
Deverá acautelar-se a autonomia de uns e de outros, uma autonomia cujas regras têm de ser claras e bem definidas. O mais importante princípio a ter em conta é o princípio da subsidiariedade, mas nem esse está claramente definido ou reconhecido pela legislação, nem é correctamente entendido[11].
No meio de todas as dificuldades que as afectam no presente, é de sublinhar a importância das freguesias, como espaço de construção, definição e preservação de identidades, condição basilar de um desenvolvimento harmonioso.
Podemos aplicar às freguesias o que em relação ao município escreveu Alexandre Herculano, num artigo publicado em O Português, de 17 de Maio de 1853: ”A administração da localidade pela localidade deve chegar até ao último limite em que não repugna ao direito das outras localidades constituídas uniformemente. A administração central abrange tudo o que fica além desses limites no regime prático da sociedade”.
A sobrevivência e o desenvolvimento das comunidades locais constitui os pilares da verdadeira democracia, e a freguesia é o primeiro órgão de que dispõe o cidadão para participar na vida pública e zelar desse modo pelos interesses da comunidade a que pertence.
António Matos Reis


[1] A palavra paróquia é de origem grega (παροίκία), encontrando-se já na versão bíblica dos Setenta, com o significado de “comunidade que vive em terra estrangeira” ou “em peregrinação”, e usa-se em grego moderno com o mesmo sentido que lhe é dado nos países latinos. A palavra freguesia foi introduzida, no latim medieval, para designar a comunidade dos “filii ecclesiae” (filhos da igreja), expressão de que resultaram os vocábulos freguês e freguesia. Tanto paróquia como freguesia são, por conseguinte, vocábulos de origem eclesiástica, e, na actual linguagem da Igreja, usam-se quase indistintamente para designar a mesma realidade. Quando se passa à administração civil, o único vocábulo usado para designar as pequenas autarquias é o de freguesia.
[2] Citem-se especialmente José Mattoso, Humberto Baquero Moreno e Mara Helena da Cruz Coelho.
[3] Imbart de la Tour, Les Paroisses Rurales du IV.e au XI.e  siècle, Paris, Alfonse Picard, 1900.
[4] Miguel de Oliveira, As Paróquias Rurais Portuguesas, Lisboa, União Gráfica, 1950.
[5] Alberto Sampaio, Estudos Históricos e Económicos, vol. I, Lisboa, Liv. Cherdron, 1923, p. 3-254; 2.ª edição, autónoma: As Vilas do Norte de Portugal, Porto, Editorial Vega, 1979.
[6] Para esclarecer um problema de vocabulário, que pode ser suscitado entre o público leigo a estas matérias, observe-se que, entre os romanos, o vocábulo civitas – no plural, civitates – de que deriva a nossa palavra cidade, não se emprega para designar esta mas sim uma comunidade étnica distribuída por um território mais ou menos vasto. A cidade, como hoje a entendemos, é designada pelo vocábulo “urbs”, de onde vem o adjectivo urbano, urbanismo, etc. Quando, neste estudo, nos referirmos à cidade, entenderemos o vocábulo no sentido moderno, equivalente ao romano “urbs”; usaremos o vocábulo “civitas”, na sua forma latina, quando nos referirmos à realidade étnica assim designada pelos romanos.
[7] Inicialmente, ou seja, na sequência da reforma de Diocleciano (284-305), tratava-se de uma grande circunscrição civil, sob a autoridade de um vigário, abrangendo várias províncias, elas mesmas incluindo várias cidades. A criação por Constantino (306-337) de novas funções administrativas (prefeitos pretorianos e condes) e a adopção do termo para designar a comunidade ou área que depende do bispo, instalado na capital de uma cidade (civitas), conduziu ao gradual abandono do seu sentido civil. Durante a Idade Média, a palavra diocese continuou a ser de uso raro e a referir apenas, na maioria das vezes, um grupo de igrejas baptismais unidas pela proximidade territorial. Quando se falava da área ou da comunidade a que se estendia a jurisdição do bispo, os textos preferiam outros termos: civitas, territorium, episcopatus, e sobretudo parochia, um termo usado ainda pelos bispos ou pelos papas reformadores do fim do século XI e início do século XII, e inclusivamente nalgumas passagens do Decreto de Graciano. O vocábulo diocese só a partir do séc. XII-XIII passou a designar exclusivamente a circunscrição sobre a qual se exercia a autoridade de um bispo. Ao mesmo tempo, acabou-se com a ambiguidade do termo parochia > paróquia, que passou a utilizar-se na sua acepção actual, designando um território organizado localmente em torno da igreja e do cemitério.
[8] T.T., Ch. D. Af. III, liv. I, fl. 3.
[9] Henrici Hostiensis, Summa aurea, lib. III (De parochiis), rubr. XXIX, n.º 1-2, Lyon 1537, fl. 392 v.º. Cf. Elisabete Zadora-Rio, «Territoires paroissiales et construction de l’espace vernaculaire», em Médiévales, n.º 49 (automne, 2005), p. 105-120.
[10] Foi importante a participação dos particulares na construção de “basílicas”, destinadas ao culto das relíquias dos santos, e na erecção de “igrejas próprias”, destinadas ao serviço religioso das populações dependentes que viviam nos seus domínios. À sua volta organizaram-se espaços, estando alguns deles na origem de futuras paróquias, quando esses templos passarem a estar na dependência dos prelados diocesanos (um estudo mais amplo desses aspectos ultrapassa o âmbito deste estudo).
[11] O princípio da subsidiariedade deve entender-se correctamente: Quando uma determinada entidade, neste caso uma pequena comunidade, não tem meios para conseguir os seus fins deve recorrer-se à autoridade que lhe está imediatamente acima, isto é, por exemplo, quando uma freguesia não tem capacidade para resolver os seus problemas ou quando os problemas ultrapassam a dimensão de freguesia, e se não lhe for possível resolvê-los em associação com outra ou outras freguesias confinantes, a que os mesmos problemas digam respeito, é de admitir o recurso a uma entidade superior, neste caso a entidade concelhia. A organização em concelhos e freguesias é, na prática, a maneira mais eficiente de resolver os problemas de uma área geográfica de dimensão limitada. Mas quando um município ou uma freguesia não tem possibilidades de resolver os seus problemas, por lhe faltarem meios, então deve recorrer ao apoio de uma autoridade imediatamente superior, por esta ordem: o município, uma instância de poder regional, o governo central. Os órgãos de poder de cada um destes níveis, por um lado, devem respeitar-se, e, por outro lado, devem colaborar uns com os outros.


A base deste estudo foi uma conferência proferida na Biblioteca Municipal de Caminha, 24 de Abril de 2013. Versões parciais deste trabalho foram publicadas no jornal Voz de Melgaço e na Revista de Administração Local, n.º 255, Lisboa 2013, p. 297-307.